Blog

O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha

por Isabel Sanson Portella, Doutora em História e Crítica de Arte

“O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável porém é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha. Seria preciso assim partir de novo desse paradoxo em que o ato de ver só se manifesta ao abrir-se em dois.”
(Georges Didi Huberman)

Julien Spiewak, artista, fotógrafo e pesquisador, coloca em questão as relações da imagem fotográfica com o corpo humano enquanto expressão artística. Nas séries realizadas nos Museus históricos do Brasil, o olhar crítico do observador se depara, a princípio, com ambientes clássicos, mobiliário de época e elementos decorativos fotografados com precisão de luz e planos frontais que valorizam detalhes e ampliam a imagem. Poderiam essas fotos pertencer a um catálogo, a uma reportagem documental do Museu, não fossem os pequenos detalhes que surgem, em cada uma, após uma observação mais minuciosa. Uma perna embaixo da mesa, um braço que se estende acompanhando a linha do encosto de um sofá, mãos que se unem ao lado de uma pintura. São fragmentos de corpo humano integrados ao mobiliário com muita sutileza e por vezes com humor. Basta perceber a proposta do artista em uma foto para que o jogo se estabeleça. Nosso olhar passa a procurar as inserções nas cortinas, nas pinturas, no mobiliário. A pele humana, em simbiose perfeita, se confunde com a textura da parede e dos estofados. O perfil humano aparece por trás do rosto de bronze. Um detalhe dourado revela a cabeça de um leão entalhado na madeira e logo o artista cria, com um dedo, a ilusão de uma língua vermelha saindo de sua boca. A crina de um cavalo de bronze, empinada em meio a um combate, levou um puxão de dedos delicadamente irreverentes. Às vezes os detalhes são tão sutis que levamos alguns segundos para percebê-los, mas cada descoberta nos trás a força da presença humana no ambiente. É ela que transforma, que anima, que faz com que uma sala seja diferente apenas porque visualizamos um braço ou parte de um torso na poltrona. O corpo coexiste e assume seu lugar na história.

Julien Spiewak compreende que uma fotografia não é apenas a captação de uma imagem real, mas é o espaço para transformar, para compor uma nova realidade. Seria sua intenção inserir um “corpo estranho” em locais históricos ou devolver a esses lugares de memória a humanidade que permite que tudo ali faça sentido?

Nas veias do braço, os veios do mármore. Na pele com sulcos, o pano de fundo para a arte. Na presença dissimulada, a ausência percebida. E é assim que o artista nos propõe o jogo. Não o “esconde-esconde” da infância, mas o da construção de uma nova imagem. A imobilidade de uma sala de museu ganha vida e movimento quando percebemos que ali, no ambiente austero e rígido, algo foi introduzido para nos surpreender e fazer pensar em atualidade e eternidade, em vida e permanência. E em tudo mais que nos acorde os olhos. Despertar, essa a verdadeira função da arte.

Isabel Sanson Portella, Doutora em História e Crítica de Arte
Museu da República, Rio (Brazil)